sábado, 31 de janeiro de 2009

Diálogo sobre Utopia e Intervenção na Sociedade

Dois amigos trocaram mensagens comigo via e-mail. Questinamentos sobre utopias desconstruídas ou ameaçadas, partidos políticos a escandalizar seus militantes, desafio de a cidadania não esmorecer. Ocultei os nomes dos amigos. Abaixo, a reprodução das mensagens com seus anexos. Entre os anexos, uma entrevista com o bispo católico Dom Pedro Casaldáliga e um texto de Agostinho Neto.

PRIMEIRA MENSAGEM
Salve, Amigo! Salve, Ademir!
Boa retomada de nossas "conversas" nesse ano novo (já não tão novo...).
Muito boa a entrevista de Dom Pedro. Mas fica uma pergunta: qual é o partido político hoje capaz de conduzir a bandeira da utopia, das transformações estruturais radicais que o país tanto demanda. O caminho individual/coletivo do "cada um faz a sua parte" pode aliviar pressões pontuais, mas não será suficiente para transformar as utopias em realidade para a sociedade como um todo (mudança de sistema).
Não concordam?
Assinado, seu Amigo.

ENTREVISTA DE DOM PEDRO CASALDÁLIGA ao jornal
Brasil de Fato - de 1º a 7 de janeiro de 2009 - edição 305

ONDE NÃO HÁ UTOPIA, NÃO HÁ FUTURO

ENTREVISTA: Para dom Pedro Casaldáliga, somente a
construção de um mundo só (e não dois ou três ou quatro)
poderá salvar a humanidade. Segundo ele, é utopia, mas uma
utopia "necessária como o pão de cada dia"
Nilton Viana,
da Redação

DOM PEDRO Casaldáliga tem sido uma voz firme na defesa de que, para o socialismo novo, a utopia continua. E esclarece: a utopia de que falamos, a compartimos com milhões de pessoas que nos recederam, dando inclusive o seu sangue, e com milhões que hoje vivem e lutam e marcham e cantam. Para ele, esta utopia está em construção, somos operários da utopia.
Mesmo convivendo com o "irmão Parkinson", como ele mesmo define a doença de Parkinson - uma enfermidade neurológica que afeta os movimentos da pessoa, causa tremores, lentidão de movimentos, rigidez muscular, desequilíbrio, além de alterações na fala e na escrita - carinhosamente respondeu às nossas perguntas. E, nesta entrevista ao Brasil de Fato, Casaldáliga fala do "absurdo criminal de constituir a sociedade em duas sociedades de fato: a oligarquia privilegiada, intocável, e todo o imenso resto de humanidade jogada à fome, ao sem-sentido, à violência enlouquecida". Defende que, hoje, só a participação ativa, pioneira, de movimentos sociais pode retificar o rumo de uma política de privilégio para uns poucos e de exclusão para a desesperada maioria. E adverte: “o latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América”.

Brasil de Fato - Como o senhor tem visto a devastadora crise que já afeta todos os países e principalmente a classe trabalhadora?

Dom Pedro Casaldáliga - Com muita indignação e revolta; com uma sensação de impotência e ao mesmo tempo a vontade radical de denunciar e combater os grandes causadores dessa crise. Esquecemos fácil demais que a crise fundamentalmente é provocada pelo capitalismo neoliberal. Irrita ver governantes e toda a oligarquia justificando que as economias nacionais devam servir ao capital financeiro. Os pobres devem salvar economicamente os ricos. Os bancos substituem a mesa da família, as carteiras da escola, os equipamentos dos hospitais...

Eu estava comentando ontém [19 de dezembro] com uns companheiros de missão que a avalanche de demissões acabará justificando uma avalanche de assaltos, por desespero. Está crescendo cada dia mais o absurdo criminal de constituir a sociedade em duas sociedades de fato: a oligarquia privilegiada, intocável, e todo o imenso resto de humanidade jogada à fome, ao sem-sentido, à violência enlouquecida. Fecham-se as empresas, quando não conseguem um lucro voraz, e se fecha o futuro de um trabalho digno, de uma sociedade verdadeiramente humana.

Como o senhor analisa o papel dos movimentos sociais frente à atual conjuntura?

Já faz um bom tempo que, sobretudo no Terceiro Mundo (concretamente no nosso Brasil, na Nossa América), se vem proclamando por cientistas sociais e dirigentes populares que hoje só a participação ativa, pioneira, de movimentos sociais pode retificar o rumo de uma política de privilégio para uns poucos e de exclusão para a desesperada maioria. Os partidos e os sindicatos têm ainda sua vez; devem conservá-la ou reivindicá-la. Sindicato e partido são mediações políticas indispensáveis; mas o movimento social organizado, presente no dia-a-dia do povo, é sempre mais urgente, como uma espécie de "vanguarda coletiva".

Diante deste cenário, na sua avaliação, quais são as alternativas para os pobres do mundo hoje?

A alternativa é acreditar mesmo que "Outro Mundo é Possível" e se entregar individualmente e em comunidade ou grupo solidário e ir fazendo real esse "mundo possível". O capitalismo neoliberal é raiz dessa crise e somente há um caminho para a justiça e a paz reinarem no mundo: socializar as estruturas contestando de fato a desigualdade socioeconômica, a absolutização da propriedade e a própria existência de um Primeiro Mundo e um Terceiro Mundo, para ir construindo um só Mundo, igualitário e plural. Com frequência respondo a jornalistas e amizades do Primeiro Mundo que somente a construção de um mundo só (e não dois ou três ou quatro) poderá salvar a humanidade. É utopia, uma utopia "necessária como o pão de cada dia". Onde não há utopia não há futuro.

No próximo mês de janeiro o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) completa 25 anos. O senhor, como incansável defensor dos camponeses pobres e inspirador do movimento, vê hoje a luta pela terra de que maneira?

O MST completa, então, seus 25 anos de luta, de enxada, de poesia, de profecia ao pé da estrada e da rua. Segundo muitos analistas o MST está sendo o movimento popular melhor organizado e mais eficaz "de fato". Sabe muito bem o MST que "a terra é mais que terra", e por isso está se volcando, pertinaz, esperançado, na conquista comunitária da terra, na educação de qualidade, na saúde para todos, numa atitude permanente de solidariedade, em colaboração gratuita e fraterna com todos os outros movimentos populares.

Que mensagem o senhor diria hoje para os milhares de trabalhadores e militantes do MST espalhados por todo o país?

Os 25 anos do MST são uma data a celebrar, dando graças ao povo da terra e ao Deus da terra e da vida, reafirmando os princípios que norteiam o objetivo e a prática do MST. Recordando a palavra de Jesus de Nazaré: "não podeis servir a Deus e ao dinheiro"; não podeis servir ao latifúndio e à reforma agrária. O latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América.

O senhor tem dito que "Para um socialismo novo, a utopia continua". Quais devem ser os caminhos (ou o caminho) para seguirmos na construção desse socialismo novo e garantir sempre que a utopia continue?

Que o MST continue a ser um abanderado desse "socialismo novo" e de uma verdadeira reforma agrária e agrícola, inserido na Via Campesina, na procura e no feitio de uma nova América. Que mantenha viva e produtiva de esperança a memória dos nossos mártires, sangue fecundo, os melhores companheiros e companheiras da caminhada. Que siga entrando, plantando, cantando, contestando, com aquela esperança que não falha porque tem inclusive a garantia do Deus da Terra, da Vida, do Amor.

"O latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América".
(Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia)

SEGUNDA MENSAGEM
Amigo,
D. Pedro Casaldáglia, com quem tive a honra de compartilhar a militância na Comissão Pastoral da Terra, e, portanto, tendo conhecido pessoalmente, aponta pistas interessantes. A utopia é a solidariedade dos movimentos sociais, e que deve ser traduzida em ideologia. Quanto ao partido portador desta ideologia, seria o PT, mas foi acometido de mal súbito e está convaslecente numa UTI. Portanto, os próprios movimentos sociais tem que retomar a tarefa de construir um partido que transforme a utopia da solidariedade na principal ideologia da nação brasileira.

TERCEIRA MENSAGEM
Prezado Amigo,

A utopia, para nós, é como a linha do horizonte (ou como a estrela-guia), para quem navega. O navegante não chega àquela linha, tampouco à estrela. Mas aos portos a que se dirige. Nada mal, se não “realizamos” as utopias. Nem por isso elas seriam descartáveis, como nos querem fazer crer os seguidores do neoliberalismo (última máscara do capitalismo selvagem, a cair agora). Contanto que elas nos impulsionem a dar os passos possíveis no aqui-agora. Por estes, cada um de nós responde, “sós e sem desculpas”, como nos escreveu Sartre, em seu cortante realismo.

Não nos cabe a desculpa de que os partidos perderam a ideologia-utopia. Porque estará sempre aberta a cada um de nós a possibilidade de “criar” o partido necessário ou de “refundar” o partido no qual militemos, ou de criticar o partido no qual votamos, de modo a “forçá-lo” a mudar de rumo. Temos instrumentos para isso. E clima democrático para tal.

Haverá, sempre, a possibilidade de cada um de nós se “sentar no trono de seu apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”, raulzitamente falando. “Ou não”, caetanamente. Tenho dito. kkk!!
Ademir Costa

QUARTA MENSAGEM
Ademir,
Gostei de suas ponderações.
Apenas acho que essas mesmas utopias que (nos) alimentaram os sonhos daqueles que militaram (militamos) nos partidos de esquerda nos idos da luta pela redemocratização do país faziam parte dos discursos dos que hoje estão no comando (poder) nos vários níveis (federal, estadual e municipal). E o possível que acaba prevalescendo no exercício do poder pelos "companheiros" está excessivamente cercado de vícios herdados daqueles a quem tanto combatíamos (mensalão, reforma agrária "zero", Henrique Meirelles, Stephanes...).
A reflexão (provocação) que faço, portanto, não tem a intensão de desqualificar ou acomodar a militância mas, pelo contrário, alertar para o fato de que os sonhadores, quando se colocam no comando do barco, "acordam" para outros horizontes e outras estrelas que não levam para os portos da dignidade humana, da solidariedade e de coerência com os sonhos daqueles que continuam sonhando. Como o barco navega conforme os rumos definidos pelo timoneiro, a tripulação pode fazer a sua parte, buscando remar em direção à "sua" estrela, mas o barco continuará embicando para os portos do "velho mundo".
O partido político tem, nessas metáforas todas, o sentido de organizar o motim, e a nossa conversa tem o propósito de indagar: " e depois do motim, como levar o barco no rumo da estrela que norteia nossos sonhos, sem se deixar enfeitiçar pelas estrelas tergiversantes?"
Nossa jornada poderia ser bem menos penosa - eu continuo remando, a estrela continua brilhando, mas o barco continua teimando em pender pra direita...
Bom, Raulzito também cantava "um sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas um sonho que se sonha junto é realidade".
Abraços "náuticos e astronômicos"!
Seu Amigo

QUINTA MENSAGEM

Prezados Amigos,
Antes de tudo, quero dizer que estou de acordo com as mensagens que vocês enviaram, com seus pensamentos. O que vai aqui é apenas reflexão que esta conversa provoca. Até para convencer-me a mim mesmo.
Vamos a outras imagens: é preciso garantir o feijão sem desistir do sonho. Feijão às vezes pouco pra tantas bocas, de qualidade duvidosa e preço caro... Às vezes, alguns se contentam com este feijão. Ou com “trinta moedas”. É da condição humana. Entretanto, como já cantou o poeta, “desesperar, jamais!”
Vamos a outros autores: “Não há luta pura” (Simone de Beauvoir, no livro “Moral da Ambiguidade”). O feijão está, aqui-acolá, “bichado”. Ou, conforme o Mestre maior, “joio e trigo crescem juntos”. Parecidos, é perigoso separar um do outro no tempo errado.
Vamos a outro parâmetro: o tempo, da imagem agrícola citada acima. Às vezes não vivemos o suficiente para ver o resultado de nossos atos. Francisco cantava “Irmão Sol, Irmã Lua, Irmão lobo tu és meu irmão”. “Irmão vento, irmão fogo, irmã água...” Ele não viu, 8 séculos depois, os avanços no conhecimento da Ecologia, a lhe darem razão...

O líder africano Agostinho Neto fala com mais propriedade do que estou (estamos) falando. O texto a seguir é conhecido. Talvez clássico, para nós que “acabamos” de passar dos 20 e poucos anos.
Gosto muito deste texto. Fruto da vida. Realista: sem ufanismos, porém, ainda assim, pra cima. Acho legal ele ter convivido com gente mal caráter e mantido a “fé no que virá”. Esta postura quase profética me fala fundo. É para mim algo inquietante. O texto vai depois de minha assinatura.

"Vamos lá fazer o que será"

Ademir Costa

A Nossa Causa

NÃO BASTA QUE SEJA PURA E JUSTA
A NOSSA CAUSA.
É NECESSÁRIO QUE A PUREZA E A JUSTIÇA
EXISTAM DENTRO DE NÓS.

DOS QUE VIERAM
E CONOSCO SE ALIARAM
MUITOS TRAZIAM SOMBRAS NO OLHAR,
INTENÇÕES ESTRANHAS.

PARA ALGUNS DELES A RAZÃO DA LUTA
ERA SÓ ÓDIO: UM ÓDIO ANTIGO
CENTRADO E SURDO
COMO UMA LANÇA.

PARA ALGUNS OUTROS ERA UMA BOLSA
BOLSA VAZIA (QUERIAM ENCHÊ-LA)
QUERIAM ENCHÊ-LA COM COISAS SUJAS,
INCONFESSÁVEIS.

OUTROS VIEMOS.
LUTAR PARA NÓS É VER AQUILO
QUE O POVO QUER REALIZADO.
É TER A TERRA ONDE NASCEMOS.
É SERMOS LIVRES PARA TRABALHAR.

É TER PARA NÓS O QUE CRIAMOS.
LUTAR PARA NÓS É UM DESTINO -
É UMA PONTE ENTRE A DESCRENÇA
E A CERTEZA DO MUNDO NOVO.

NA MESMA BARCA NOS ENCONTRAMOS.
TODOS CONCORDAM - VAMOS LUTAR.
LUTAR PRA QUE?
PRA DAR VAZÃO AO ÓDIO ANTIGO?
OU PRA GANHARMOS A LIBERDADE
E TER PRA NÓS O QUE CRIAMOS?

NA MESMA BARCA NOS ENCONTRAMOS.
QUEM HÁ DE SER O TIMONEIRO?
AH! AS TRAMAS QUE ELES TECERAM!
AH! AS LUTAS QUE AÍ TRAVAMOS!

MANTIVEMO-NOS FIRMES: NO POVO
BUSCÁRAMOS A FORÇA E A RAZÃO,
INEXORAVELMENTE.
COMO UMA ONDA QUE NINGUÉM TRAVA,
VENCEMOS.

O POVO TOMOU A DIREÇÃO DA BARCA.
MAS A LIÇÃO LÁ ESTÁ, FOI APRENDIDA:
NÃO BASTA QUE SEJA PURA E JUSTA A NOSSA CAUSA.
É NECESSÁRIO QUE A PUREZA E A JUSTIÇA EXISTAM DENTRO DE NÓS.

Agostinho Neto,
Líder da Frente Nacional para a Libertação de Angola

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